Notícias

ENTREVISTA COM ROBERT GALLO

13/12/2003 - BBCBrasil.com

Gallo: "Ninguém sabe quando vacina contra a Aids existirá"

Poucos conhecem a história da Aids como o cientista americano Robert Gallo, diretor do Instituto de Virologia Humana da Universidade de Maryland.
Há duas décadas, ele foi um dos responsáveis pelo isolamento do vírus HIV, causador da doença e, desde então, dedica-se a descobrir uma cura para a epidemia.
Em uma entrevista exclusiva à BBC, Gallo afirma preferir não estabelecer um prazo para a criação de uma vacina contra a Aids, apesar de estar convicto de que ela seria a melhor forma de conter a epidemia.

Leia abaixo a entrevista com Robert Gallo.

BBC – Qual a opinião do senhor sobre as pesquisas relacionadas ao desenvolvimento de uma vacina contra a Aids?

Robert Gallo – Há três anos, o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, afirmou que teríamos uma vacina contra a Aids em dez anos. Ele não poderia ter dito isso, ninguém sabe quando poderemos ter uma vacina. Nós teremos quando for possível. Estamos mais perto hoje do que estávamos ontem. Na época em que o vírus foi descoberto, me perguntaram sobre a vacina. Eu disse que não sabia. Mas disse que, uma vez podendo fazer o vírus se desenvolver no laboratório, talvez pudéssemos realizar experiências dali a alguns anos. Mas isso era apenas uma aposta. Hoje, aprendi a não fazer apostas.
Nunca mais respondi a perguntas como essa. A resposta é: ainda não sabemos. A verdade é que, dois anos depois da descoberta do vírus, os primeiros testes com vacina começaram a ser realizados. O resto já é sabido.

BBC – Mas qual deve ser a linha de pesquisa para uma vacina contra a Aids?

Gallo – Quando se começou a pensar em uma vacina, reunimos especialistas em imunização e especialistas em retrovírus (classe de vírus a qual pertence o HIV) para tentar desenvolver uma vacina. Percebemos que uns não conheciam o trabalho dos outros, foi tudo bem complicado. Tentou-se fazer uma vacina com pedaços do vírus vivo, mas os animais desenvolviam Aids. Depois, tentou-se usar pedaços da proteína do vírus, que induziriam anticorpos capazes de conter a infecção. As pesquisas foram inicialmente bem sucedidas, mas só protegiam animais da mesma família dos animais de onde o HIV que inspirou a vacina foi retirado, o que me desapontou. Desde o fim dos anos 80, não tento mais fazer vacinas, presto consultoria apenas.
A verdade é que ainda não sabemos o que colocar dentro de uma vacina para ela funcionar. O campo ganhou novas esperanças no meio dos anos 90, em uma estratégia que ainda é dominante hoje, de tentar fabricar células T (células do sistema imunológico) capazes de matar o HIV. Há trabalhos interessantes sendo realizados na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mas eles ainda não bloqueiam a infecção, apenas deixam o vírus adormecido no organismo, impedindo que a doença se manifeste.
Tudo isso está ajudando a gente a entender melhor a Aids, entendermos esses mecanismos que existem nas próprias células humanas e que podem ser capazes de neutralizar a ação do HIV. Eu acho, e espero que daqui a cinco anos não seja um bobo falando isso, que uma vacina poderá ser criada a partir de anticorpos e proteínas atenuadas do vírus, administrados juntos.

BBC – Quais são as novas estratégias de combate ao HIV que vêm sendo estudadas?

Gallo – Estudam-se substâncias produzidas pelas células T que impediriam o HIV de infectar as células. As funções de alguns desses compostos estão começando a ser conhecidas, a função de muitos ainda não é. Esses estudos mostram que podemos usar como alvo a proteína produzida pelo vírus e combatê-la fortemente. Poderiámos impedir a entrada do HIV na célula, antes de o processo da infecção começar, prevenindo novas células de serem infectadas. E se conseguimros fazer isso sem toxicidade nem efeitos colaterais, seria uma nova forma de terapia. Em resumo, estamos tentando encontrar inibidores naturais do HIV que possam ser reproduzidos em laboratório e sejam capazes de funcionar em todo e qualquer organismo.

BBC – Os avanços relacionados ao combate à Aids nos últimos anos foram imensos, a ciência mostrou que pode controlar a doença de forma relativamente fácil, com as terapias antiretrovirais. O grande desafio é levar o tratamento aos países em desenvolvimento...

Gallo – Todas as terapias, por melhores que sejam, ainda não são ideais porque são tóxicas, caras e precisam ser administradas para o resto da vida do paciente. Ainda precisamos trabalhar muito e isso tudo é agravado pelo fato de milhões de pessoas estarem infectadas em países pobres, sem acesso ao tratamento. Isso é um tremendo desafio social, político e econômico para o mundo industrial. Um desafio de destribuição e um desafio para os cientistas também, que precisam trabalhar para obter um tratamento mais viável para essas pessoas. Por exemplo, vacinas terapeuticamente inteligentes, administradas uma ou duas vezes por ano, a custos mais baixos. Eu acho que podemos ir nessa direção, mas não vamos fingir que será fácil. Todos precisam colaborar.

BBC – Por que o HIV é tão agressivo para o organismo?

Gallo – Os retrovírus como HIV misturam o seu material genético ao da célula que é infectada, tornando-a contaminada para sempre. Pior: quando a célula se divide, o material genético do vírus também é transferido como se ele fizesse parte do próprio material genético da célula. Isso significa que a pessoa é infectada para sempre. As terapias surgiram a partir do estudo do mecanismo do HIV. Descobrimos que o HIV produz duas enzimas, a protease e a transcriptase reversa, que em diferentes estágios da infecção são responsáveis pela replicação do vírus. Com base nessas descobertas as drogas do coquetel foram desenvolvidas.
Pessoalmente, eu pensava que as vacinas chegariam antes, porque não há um histórico na ciência de remédios eficazes para tratar qualquer tipo de vírus. Esses medicamentos geralmente são muito tóxicos. Não me animei muito com o desenvolvimento de terapias antiretrovirais, mas abrimos o nosso laboratório para vários especialistas, que começaram os testes. Progressos foram feitos e descobrimos que poderia se fazer algo pelo infectado. Foi o início da história do AZT e dos outros remédios que o seguiram, os demais inibidores da transcriptase reversa e, mais tarde, da protease.
Antes dessas terapias, ou o soropositivo morria ou era tratado apenas de acordo com os sintomas da Aids que iam aparecendo, mas não se podia fazer muito pelo paciente. A Aids nos mostrou que é possível realizar terapias eficazes contra vírus.

BBC – Há o risco de, se as terapias antiretrovirais não forem realizadas de forma correta, nos depararmos com supervírus daqui para frente?

Gallo – Já disse que, se as terapias não forem realizadas corretamente, nós poderíamos obter vírus resistentes e mutantes. Normalmente, os supervírus não se replicam tão bem quanto os convencionais, mas temos também que aplicar o que descobrimos através de estudos realizados nos Estados Unidos e na Europa. Agora, sabemos como combinar as drogas da melhor forma e que às vezes precisamos individualizar o tratamento. Que uma região do mundo pode não ser infectada pelo mesmo tipo de vírus do que outra. Temos que tratar esssas populações com o objetivo de reduzir a toxicididade do tratamento e minimizando os riscos de desenvolver resistência.
Acredito, no entanto, que poderá haver infecções resistentes a um grande número de medicamentos. O jeito é tratar todo o mundo da melhor forma possível, a infraestrutura precisa ser a melhor para isso. Para mim, a forma melhor é as pessoas responsáveis pelo desenvolvimento dos medicamentos conversarem com as que estão na linha de frente do combate à doença, e não apenas sentar no laboratório e pesquisar. Nós podemos fazer um trabalho melhor.

BBC – Quando o senhor começou a trabalhar com o HIV?

Gallo – Começamos a realizar as primeiras experiências com amostras de sangue de pacientes com Aids no início de 1982. Naquela época, não tentávamos isolar as células e observá-las no laboratório, com o objetivo de isolar o agente da infecção. No entanto, tínhamos uma ideia clara: que a Aids era causada por um retrovírus, idéia que estava correta.
Mas no início achávamos erradamente que o retrovírus causador da Aids era o terceiro de um grupo de vírus associados ao aparecimento de alguns tipos de leucemia, o HTLV 1 e 2. Esses vírus haviam sido descobertos antes por nós. Então, nós estávamos certos de que se tratava de um retrovírus, mas estávamos errados ao pensar que ele era próximo aos vírus associados à leucemia. Então, nossas primeiras experiências consistiram simplesmente em pegar anticorpos contra os vírus da leucemia que tínhamos e tentar cruzar alguma reação com o sangue dos pacientes com Aids.
Obtivemos alguns resultados ocasionais, o que nos confundiu. Por que eram apenas ocasionais? O que acontecia é que as pessoas eram duplamente infectadas, com o HIV e com os vírus associados a leucemia, pessoas que contraíram esses vírus através de sangue contaminado.
Alguns meses depois é que começamos a cultivar o sangue dos pacientes em laboratório, isolando as células T CD4 (do sistema imunológico), que seriam as principais afetadas pelo HIV. Começamos a cultivá-las, fazendo com que se reproduzissem. Aí, no início de 1983 tivemos nossa primeira grande produção de vírus. Era de uma pessoa duplamente infectada, da França, que estava de férias no Haiti, sofreu um acidente de carro, foi submetida a uma transfusão de sangue e pegou um dos vírus associados a leucemia e o HIV. Mas, dessa vez, o vírus da HTLV fez as suas células crescerem, enquanto o HIV apresentou um comportamento diferente. Era da família do HTLV, mas era uma variação significativa. Começamos a isolar as células, isolar e tínhamos certeza de que estávamos no caminho certo para descobrir o vírus da Aids. No fim de 1983 e início de 1984, os testes sangüíneos tornaram-se cada vez mais desenvolvidos.

BBC – Na época, o senhor nomeou de HTLV 3 o vírus causador da Aids. Como esse trabalho ajudou o senhor a desenvolver o teste sangüíneo?

Gallo – Um ponto crucial da descoberta do HIV, que levou ao desenvolvimento do teste, ocorreu em meados de 1983. Alguns de meus colegas obtiveram um avanço técnico que foi importantíssimo: encontraram um jeito de fazer esse vírus crescer permanentemente e continuamente no laboratório, para que qualquer centro do mundo pudesse trabalhar com ele.
O cultivo do HIV fez com que conseguíssemos produzir o vírus infinitamente. Sabíamos que o problema estava resolvido. Isso foi importante tanto para descobrir a causa da Aids, como para fazer as redes de saúde pública conseguirem começar a tratar a doença. Para as redes de saúde pública, essa cultura permitiu que a epidemia fosse acompanhada. Antes, era preciso esperar que alguém manifestasse a doença, o que leva de cinco a quinze anos depois da exposição, o que não é uma boa forma de acompanhar a epidemia. O teste dava respostas, era relativamente simples. Para os cientistas, foi importante para associar o vírus como a causa da Aids, retirando apenas uma pequena amostra de soro sangüíneo das pessoas e testar por anticorpos. Era simples, milhares de pessoas podiam ser testadas rapidamente.

BBC – Como o senhor explica a rapidez com que tudo isso foi descoberto?

Gallo – Sobre a Aids, tenho que copiar uma frase de Victor Hugo: “Era o melhor dos tempos, e o pior também”. Um pouco antes de a Aids surgir, ninguém achava que retrovírus poderiam infectar seres humanos. Animais, sim, mas não seres humanos. Descobrimos o HIV quando tínhamos tanto capacidade de cultivar células como uma rede de saúde pública eficiente para lidar com doenças. Houve um consenso grande entre os praticantes da ciência básica nos Estados Unidos e as redes de saúde pública na época. Hoje essa proximidade já não existe mais.

BBC – O senhor se sentiu frustrado com toda a controvérsia que a descoberta criou na época?(Gallo envolveu-se em uma disputa com Luc Montagnier, do Instituto Pasteur da França, que colaborou com a sua pesquisa mas acabou não recebendo a patente de co-descobridor do vírus da Aids. A disputa só se resolveu em 1988, quando Gallo e Montagnier relataram conjuntamente a história da descoberta do vírus)

Gallo – Acho que as coisas poderiam ter sido diferentes desde a entrevista coletiva que anunciou a descoberta do HIV. Devido a todos os problemas de patentes, entre cinco e seis anos de nossa carreiras podem ter sido considerados perdidos por conta da pressão que sofremos. Muitas vezes tanto eu quanto o governo americano da época (de Ronald Reagan) fomos criticados. Mas se eu fosse a secretária de Saúde na época, provavelmente gostaria de anunciar logo a descoberta do vírus, como foi feito.
A razão dessa pressa não foi porque o governo Reagan estava sob pressão, como muitos dizem, mas era mais simples: nossos trabalhos já estavam sendo impressos pela Science e pela The Lancet (revistas científicas), e eu senti que precisava contar para alguém do governo sobre a descoberta. Foi o que eu fiz. Contei para o diretor do Instituto Nacional de Câncer da época, e pedi para ele não contar para ninguém. Deixei claro que estava conversando sobre a descoberta com o grupo de Montagnier na França, e disse a ele sobre as publicações. Mas o grupo francês não tinha mostrado a causa da Aids, tinha isolado o vírus. Fui à França e disse que, se o vírus deles fosse o mesmo do nosso, nós deveríamos fazer um anúncio conjunto da descoberta. Eles ficaram felicíssimos.
O plano de Montagnier era realizar comparações em nossos dois laboratórios depois da publicação do nosso estudo. Mas ele não esperava a entrevista coletiva preparada pelo governo americano, nem eu. Para resumir, a informação do nosso estudo vazou, a coletiva deixou o grupo da França de lado. Eu e Montagnier brigamos por mais de seis meses, mas hoje temos tudo esclarecido, nunca fugimos da discussão. Depois disso, tudo se tornou uma história de patente fenomenal que não vale a pena contar, rende mais de um livro e meio.

BBC – Como você se sente por ter feito uma enorme descoberta para a ciência?

Gallo – É bom ter conhecido tantas pessoas, mas nada dentro de mim me diz que contribuí tanto assim. Sempre sofri da velha insegurança, achando que nunca seria bom o suficiente para me tornar um cientista. A ciência nunca acaba, é preciso sempre estudar, se atualizar. Acho que ninguém que até tenha contribuído muito mais do que eu sente que fez uma coisa maravilhosa.
Se conseguimos colaborar para acabar com a Aids, aí sim acharia que fiz uma contribuição importante.