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RISCO VOLUNTÃRIO

01/07/2009 - O ESTADO DE S.PAULO

AntiAIDS vira droga "recreativa"

Trio formado por ecstasy, remédios contra impotência e para combate ao
HIV é usado para esquentar a noitada

Um trio perigoso começou a frequentar salas escuras de baladas e
festas particulares, predominantemente procuradas pelo público gay. É
a mistura de três pílulas - medicamento contra impotência, ecstasy e
uma das drogas usadas no coquetel antiAIDS - que revela não apenas a
postura suicida dos jovens com relação às doenças sexualmente
transmissíveis como também a necessidade, a qualquer custo, de
"alucinar" durante as noitadas.

O pagamento de até R$ 200 pela tríplice de comprimidos é justificada
com argumentos que têm aterrorizado quem os escuta: o ecstasy é para
pirar, o remédio antidisfunção erétil, para ter fôlego, aguentar todas
as relações sexuais e aumentar a libido e o remédio contra AIDS é
porque sabem que vão fazer sexo sem CAMISINHA depois de tanta piração.
Acreditam que o remédio pode impedir a infecção, o que não tem nenhuma
comprovação científica. Usuários dizem que já havia a cultura de
recorrer a fortes medicamentos para tratar o HIV pós-sexo de risco,
chamado de "coquetel do dia seguinte". Agora, as baladas mostram que
engatinha a "moda" da pré-exposição.

O comportamento negligente não para aí. A combinação de remédios usada
para tratar o vírus HIV, importante conquista para a sobrevivência dos
pacientes soropositivos, também foi desvirtuada para a categoria de
"drogas recreativas".

SEM LIMITE DE GRUPO

Além da ideia extremamente perigosa de que pode ser uma proteção para
a roleta russa que é ter relações sexuais sem PRESERVATIVO, também é
consumido para dar um "plus no barato", com o intuito de conseguir
aumento da ereção e alucinação. O alerta dos especialistas quanto à
prática é que mesmo que esse comportamento arriscado hoje esteja
restrito ao grupo gay (e endinheirado), a história da AIDS já mostrou
que a doença não segue nem respeita orientações sexuais.

"É uma situação que nos preocupa porque acende a suspeita de um
comércio paralelo de antirretrovirais (medicamentos do coquetel
antiAIDS)", afirma o presidente da Sociedade Brasileira de
Infectologia (SBI), Juvêncio Furtado, que em seu consultório já ouviu
o relato de pelo menos seis pacientes que contaram como o trio tem
sido usado na noite paulistana.

"No início da epidemia de AIDS (anos 80), havia um contrabando da
medicação que acabou quando foi ampliada a cobertura dos pacientes
pelo Sistema Único de Saúde (em 1996). Ainda que nada tenha sido
comprovado, essa hipótese agora volta à tona."

Atualmente, todos os cerca de 600 mil portadores de HIV que residem no
Brasil são assistidos pelo programa nacional e gratuito que cuida da
AIDS no País. Aqueles que estão em fase mais debilitada de saúde, com
a carga viral da doença alta, recebem gratuitamente uma combinação de
antirretrovirais, elaborados individualmente para cada paciente. A
distribuição é totalmente controlada, não há venda em farmácia, mas o
comportamento negligente dos próprios soropositivos é o que fomenta as
noites alucinantes de quem prefere usar todos os tipos de drogas e
arriscar um comportamento vulnerável.

"Os antiAIDS são vendidos nas festas por gente que toma o coquetel.
Não tem um comprimido X ou Y. É qualquer um", diz Lucas (nome
fictício), SOROPOSITIVO e testemunha desse hábito que vem ganhando
corpo nas noites. Leandro (também nome fictício), que durante dois
meses deste ano foi adepto do antirretroviral antes da bebedeira
pré-sexo sem proteção, conta como conseguia o remédio.

PIOR RESSACA DA VIDA

"Por muitas vezes comprava de pessoas que conhecia e são portadoras.
Em outras, com amigos de amigos", afirma ele, que graças à mistura
conseguiu a pior ressaca da vida: o medo de agora estar contaminado.
"É muito fácil encontrar os medicamentos para venda. São
comercializados como droga até mesmo nas baladas."

Esses relatos já chegaram aos ouvidos de Maria Filomena Cernicchiaro,
diretora do Ambulatório do Centro Estadual de Referência e Treinamento
em HDST/AIDS de São Paulo. "É impressionante", diz, lamentando
duplamente, tanto pelo descaso com a AIDS, quanto pelo abuso de drogas
que está por trás dessa opção. "É preciso ter consciência. Os
medicamentos mudam todo o mecanismo celular, podem causar diarreias
severas. Infelizmente, a geração atual associa a prevenção do HIV a um
comprimido."

BOMBA-RELÓGIO

O infectologista do Hospital Albert Einstein Artur Timerman ressalta
que o trio de drogas que passou a frequentar as baladas é uma bomba
para o coração, coleciona efeitos colaterais, muitos ainda nem
mensurados pela medicina, além de representar uma ameaça ainda mais
séria para o controle da epidemia da AIDS. "O uso indiscriminado é uma
ode à irresponsabilidade, pode deixar o organismo resistente ao
medicamento", afirma . "Isso significa que, se um dia a pessoa
precisar do coquetel porque foi contaminada, não vai funcionar."

O número de adeptos da mistura potencialmente letal ainda não foi
calculado no País. "Já ouvimos falar muito sobre o uso desvirtuado dos
antirretrovirais, misturados a outras drogas, mas nunca conseguimos
detectar a veracidade disso por meio de estudos científicos", afirma o
médico Ésper Kállas, da Faculdade de Medicina da USP, que coordena
pesquisas sobre o assunto no Hospital das Clínicas. "No ano passado,
um dos médicos que é colaborador do nosso projeto fez um trabalho para
tentar mapear esse comportamento em São Francisco, um redutos gay dos
Estados Unidos", afirma. A coleta de dados foi feita em circuitos de
bares e clínicas. Os resultados mostram que 18% já ouviram falar no
trio, parcela que caiu para 2% quando a pergunta era se "uma pessoa
conhecida" já fez a pré-profilaxia. "A porcentagem caiu para 0,12%
quando o questionamento foi se você já fez uso. "Há dificuldade em
identificar se é verdade", diz Kállas.

Se essas estatísticas ainda colocam dúvidas sobre o comportamento,
outras duas endossam o risco do abuso de drogas e do sexo sem
proteção. O último relatório da Fundação Oswaldo Cruz mostra que o
País alcançou recorde de mortes por overdose. E o Ministério da Saúde
reforçou que a doença avança entre gays jovens.

Tomou só para ir à balada. Hoje, sente vergonha

O medo do HIV sempre rondou mas, sozinho, nunca foi suficiente para
fazer da CAMISINHA uma regra. Quando a noite ainda prometia bebedeira,
aí mesmo que o juízo ia embora. Quando um amigo falou que o outro
tinha escutado que tomar um medicamento antiAIDS poderia tirar a
preocupação da balada e só deixar o prazer imperar, ficou difícil não
cair na tentação. Professor de educação física, Leandro tomou mais uma
vez a PÍLULA do antirretroviral como se fosse uma preparação para a
balada. Hoje, mesmo envergonhado, tenta convencer os amigos a não
repetir o mesmo erro.

O uso da pré-profilaxia ainda não é reconhecido por todos os
especialistas. Os médicos têm dificuldade de definir se é boato ou
prática corriqueira. A única pesquisa feita sobre o assunto, no ano
passado, mostrou que é uma prática rara. Ainda que o receio de
alarmismo impere, Artur Timerman, infectologista do Hospital Albert
Einstein, avalia que é preciso alertar sobre os riscos. Os casos hoje
isolados, restritos a um público, podem se espalhar. "Já foram
descritos casos de convulsão resultantes da mistura de
antirretrovirais e outras drogas. E o comportamento de descaso com a
AIDS é assustador."

Usuários deturpam pesquisas, diz especialista

A ideia de recorrer aos antirretrovirais, tanto antes de fazer sexo
sem proteção como depois, na tentativa de corrigir "a besteira", tem
origem nas informações deturpadas sobre a ciência médica.

Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, a procura
indiscriminada pelo turbilhão de medicamentos após a relação sexual
sem PRESERVATIVO, já chamada de "coquetel do dia seguinte", começou
porque chegaram ao público informações erradas sobre o protocolo de
saúde. São dois casos em que não portadores são orientados a tomar a
medicação. Primeiro, quando a pessoa é vítima de violência sexual,
para evitar um possível contágio. Ou quando um profissional de saúde
(médico, dentista, enfermeiro) sofre um acidente de trabalho e tem
contato com sangue do paciente.

"A indicação é restrita e não há nenhuma comprovação de que funciona
como estratégia de prevenção", afirmou Maria Filomena Cernicchiaro, do
Centro Estadual de Treinamento em HDST/AIDS. "Mas temos recebido
pessoas que querem o medicamento porque esqueceram do PRESERVATIVO
depois da noitada. Alguns já chegaram até a ameaçar com violência
diante da recusa, sem nem cogitarem os efeitos colaterais que essas
medicações podem acarretar."

Já a proposta de ingerir os medicamentos antirretrovirais antes mesmo
de ter a relação sexual foi sequela de uma deturpação de novas
pesquisas da medicina. "Começaram testes iniciais em camundongos sem
ainda nenhuma evidência de que funcionam", afirma Éper Kállas,
pesquisador da Faculdade de Medicina da USP.

Em 2006, um grupo de médicos coordenado por Kállas começou a estudar a
pré-profilaxia em algumas pessoas que têm comportamento de altíssimo
risco (como frequentadores de casas de sexo grupal que não usam
PRESERVATIVO). O chamado Iprex (www.iprex.org.br) teve 40 voluntários
cadastrados. "Estamos estudando, mas ainda não temos nenhuma resposta
para as perguntas se é seguro, tolerável e eficaz", ponderou Kallas.