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JOVENS VIVENDO COM HIV/AIDS

02/07/2009 - Folha de S.Paulo

Eles nasceram poucos anos depois de a Aids começar a se alastrar.

Jovens nascidos com HIV nos anos 80 relatam dificuldades e superações

Suas mães eram portadoras do HIV e não tiveram chance de protegê-los -além de não haver, como hoje, políticas para prevenir a transmissão no parto, muitas nem sabiam que tinham o vírus.
Duas décadas depois, a primeira geração de bebês infectados por transmissão vertical (de mãe para filho) nos anos 80 chegou à juventude. Eles já são maioria nos serviços pediátricos de HIV -há poucos casos novos de crianças infectadas.
Quase todos passaram a infância enfrentando doenças oportunistas. Desde pequenos, acostumaram-se com termos técnicos como carga viral, linfócitos CD4 ou genotipagem.
Enfrentaram discriminação, tiveram um complicador a mais em situações já desafiadoras como a descoberta do sexo e ainda se veem às voltas com internações constantes.
Mas dizem que se fortaleceram com as dificuldades e hoje encaram a Aids como uma doença crônica, que exige cuidados, mas não os impede de aproveitar a vida e fazer planos.
A assistente social Luciana Basile notou essa característica ao ouvir alguns desses jovens para seu mestrado, defendido em março, na PUC-RS. "Eles não pensam muito na morte nem têm a autoestima abalada. A expectativa de vida é grande."
Segundo Marcelo de Freitas, sanitarista do Departamento de DST e Aids do Ministério da Saúde, a infecção do HIV em crianças é mais agressiva. Mas, com o advento de novas drogas, elas tiveram a vida prolongada.
A partir de 1996, foi implantada no país a política de profilaxia da transmissão vertical, que inclui dar antirretrovirais (remédios que impedem a multiplicação do vírus) para gestante e bebê. A chance de contaminação, que era de 25%, hoje é de 1% ou menos.
Para Freitas, a Aids tem padrão de doença crônica, mas só quando há boa adesão ao tratamento. Um grande problema nessa idade é o fato de muitos pararem de tomar o remédio.
"Como eles tomam medicamento desde novos e não têm sintomas, ficam desmotivados", diz Sidnei Pimentel, infectologista do Centro Estadual de Referência e Treinamento em DST/Aids de São Paulo.
À medida que essas crianças crescem, surgem novas questões a serem enfrentadas, como a transição entre o setor pediátrico e o de adultos no hospital.
No centro, foi criado há um ano um ambulatório de transição, que prepara o jovem para a mudança de setor. "Na pediatria, eles são mais protegidos. O setor de adultos tem mais pacientes, pode ser chocante mudar", afirma Pimentel.
No início do mestrado, Luciana Basile acreditava que esses jovens não tinham espaço na esfera pública. Mas, ao se aproximar deles, viu que essa "invisibilidade social" era intencional. "São eles que buscam não se revelar para se proteger do preconceito. Alguns disseram que falariam se tivessem câncer, mas que não querem dizer que têm Aids."


Para jovem com HIV, defender-se de preconceito é um aprendizado

Thompson Toledo, 22, começou a desconfiar que tinha algum problema aos sete anos, no início da vida escolar. Notou que, diferentemente dos colegas, ia ao médico e tomava remédios com muita frequência. Foi um funcionário da instituição para crianças com HIV onde morou dos sete aos 18 anos que contou-lhe o problema.
O menino havia sido criado pela tia até então -mudou-se para um orfanato e depois para a instituição por dificuldades financeiras. Sua mãe viveu até ele completar 16 anos, mas foi morar no Rio quando ele era muito pequeno. Tinha quatro anos quando o pai morreu.
A mãe chegou a levá-lo duas vezes ao médico, mas ela própria não queria se cuidar. "Eu falava para ela tomar remédios, mas ela dizia que já tinha vivido a vida dela. Faleceu aos 37." Os vizinhos diziam à tia do garoto que deveria separar os objetos dos seus outros filhos, mas ela não dava importância. "Ela sempre me tratou igual."
Mas ele não teve tanta sorte na escola, um colégio católico particular ao lado da casa de apoio. Foi discriminado pelos colegas. "Não queriam fazer trabalho comigo. Separaram um banheiro e um bebedouro para mim. Me chamavam de aidético, as mães não deixavam que eles falassem comigo. Foi um rótulo muito pesado."
Com o tempo, aprendeu a lidar com o preconceito. "Você aprende a se defender. Eu explicava que não era assim, mostrava as formas de contágio. Ganhei amigos de verdade."
Foram alguns desses amigos que o ajudaram quando passou por momentos difíceis. Depois que deixou a casa de apoio, aos 18, teve problemas familiares e saiu de casa. Morou por cinco meses na rua e inventava que estava com dor para conseguir comida no hospital. Parou de se tratar. "Perdi vários amigos que tinham Aids. Isso me balançou, foi me desmotivando."
O descuido deixou sua saúde mais frágil. Só neste ano, foi internado três vezes. Mas voltou a se tratar. "Meus amigos ficavam no pé, falavam que gostavam de mim, que minha vida era valiosa", lembra.
Thompson ainda considera o preconceito grande. Mesmo já tendo falado sobre o tema em palestras em escolas, confessa que hesitou em dar esta entrevista. "Decidi falar porque, querendo ou não, você acaba se tornando uma referência para falar de Aids, de juventude."
Foi depois de dar uma palestra no Hospital Emílio Ribas, onde se trata, que conheceu a atual namorada, de 20 anos, que não tem o vírus. A maioria de suas ex era portadora do HIV. No caso de a menina não ter o vírus, ele nem sempre contava sobre a doença.
Thompson diz que há três tipos de pessoa para namorar: "Aquela que se separa depois que você conta que tem Aids, aquela que finge que aceita e dois meses depois some e aquela que realmente aceita."
Hoje, ele trabalha em duas entidades ligadas ao HIV. Pensa em estudar psicologia, adora cinema, samba e toca instrumentos de percussão. Quando pode, vai aos jogos do seu time -é corintiano "roxo".
Diz que, com a rotina que leva, não tem tempo de pensar em coisas ruins. "Estou sempre fazendo algo. Deixa que a morte, quando quiser, chegue sem avisar. Porque, se ela avisar, eu mando embora."


Jovem de 23 anos com vírus da Aids vai ao médicos sozinha desde os 11

Foram três revelações bombásticas no mesmo dia. Aos sete anos, Rosana Cassanti, 23, ficou sabendo, por sua médica, que tinha HIV, que era filha adotiva e como são feitos os bebês. "Eu estava muito debilitada. Não tive infância", diz.
A mãe adotiva havia descoberto a doença pouco antes, após a menina ter pneumonias e anemias recorrentes. Depois de ouvir histórias sobre soldadinhos maus (os vírus) e bons (os anticorpos), Rosana perguntou à médica se a doença tinha cura. "Ela disse: 'Não. Mas estamos juntas nessa luta'."
A garota teve que amadurecer cedo. Vai ao médico sozinha desde os 11 anos. Chegou a ficar tão mal que ouvia as enfermeiras dizerem que ela não viveria.
Na escola, aguentava a gozação dos colegas. "Eles arrancavam minha touca e eu chorava, porque estava muito feia, careca, com feridas na cabeça. Falavam que eu tinha malária. Eu nem sabia o que era malária."
Aos 12, Rosana começou a usar drogas: álcool, cocaína, ecstasy. Teve uma overdose e quatro comas alcoólicos.
Beijava vários garotos, mas fugia do sexo. "Eu teria que contar sobre a doença, poderia levar um fora. Dói, não é? Não é que o cara não gostou de você, é um fora preconceituoso."
Dos 12 aos 16, parou de se tratar. "Estava cansada de remédio, doença, preconceito. Acho que queria me destruir." Mentia para a pediatra e para a família. Por causa das várias infecções oculares que teve, perdeu a visão do olho direito.
Quando tinha 14 anos, uma professora disse aos meninos da sala que tomassem cuidado com Rosana porque tinha HIV. "Todo mundo ficou sabendo. Chegaram a jogar giz em mim." Foi aberto um processo contra a escola --ela o arquivou após a professora pedir desculpas.
Depois de largar as drogas, com a ajuda da igreja evangélica Bola de Neve Church, da qual é membro atuante, Rosana voltou a se tratar, apesar de não ter sido fácil tolerar os efeitos colaterais: acúmulo de gordura na barriga, náusea, falta de apetite. Mas o pior para ela foram caroços na coxa e na barriga devido a um remédio injetável. "Nem conseguia usar jeans."
Teve vários empregos em lojas e como operadora de telemarketing. Enfrentou fofocas no trabalho por causa do HIV: os colegas não acreditavam que ela havia se infectado por transmissão vertical. "Diziam: 'Ah, aposto que ela pegou na balada, com um cara, usando drogas. Se ela tivesse pegado quando nasceu, não estaria nem viva'."
Hoje, a saúde de Rosana está boa. Ela integra um grupo de jovens que se reúne para conversar e falar sobre cidadania e direitos, formado por portadores e não portadores do vírus, vai ao cinema e adora comer fora. Procura emprego e quer estudar moda. "Desenho roupas e sonho em inventar uma marca. Quero ser a primeira a me formar na minha família."
Quer se casar. "Com o estado da minha doença, posso até engravidar." Diz que sempre conta aos namorados sobre o HIV. "Quem ficar comigo tem que gostar de mim por completo."
Só fica triste ao falar sobre os mais de 15 amigos que perdeu para a Aids. "A morte de pessoas próximas dá medo."
Mas logo recobra o ânimo. "Não posso pensar em coisas ruins. Tenho que lutar, já estou lutando."


Menina com HIV que tinha medo de tocar nas pessoas hoje está casada

Quando perguntava por que tomava remédios, Karina Ferreira da Cruz, 22, ouvia da avó que era porque tinha problema de crescimento. "Ela me dizia que eu tinha bebido água do parto e por isso tinha problema para crescer", lembra.
Um dia, aos nove anos, ouviu a avó contar a uma mulher que sua neta tinha Aids. "Falei: "Vó, já que a senhora sabe o que é Aids, me explica porque eu não sei". Ela arregalou os olhos, sem saber o que fazer", lembra.
Karina foi criada por essa avó. Sua mãe morreu quando tinha sete anos e seu pai, que era usuário de drogas, foi assassinado quando ela tinha 16.
Quando "caiu na real" sobre o que era a doença, a menina acabou se isolando. "Tinha medo de tocar nas pessoas e passar a Aids. Para eu ficar com alguém era o caos", diz. Perdeu esse receio com a ajuda de terapia, que fez "desde que se entende por gente" até os 17 anos.
Antes de sua doença ser descoberta, vivia internada. Depois que começou a usar os antirretrovirais, melhorou e quase não teve mais infecções oportunistas na infância.
Karina chegou a tomar 12 remédios por dia. Mas, dos 14 aos 18 anos, parou de seguir o tratamento. "Minha avó parou de me dar os remédios e eu fiquei rebelde. Eu fingia que tomava, mas jogava na privada, cuspia." O fato de não ter dor contribuía. "Não me sentia doente."
Voltou a se tratar depois que o médico disse que estava esgotando todas as combinações disponíveis de remédios e que, se continuasse assim, só poderia tomar medicamentos para controlar a dor, e não a doença.
Karina conta que teve que lidar com a superproteção da avó desde nova. "Ela não me deixava fazer nada: podia tomar apenas um sorvete quando fizesse muito sol. Tinha que voltar para casa às seis da tarde. Até hoje ela é muito zelosa comigo."
Quando quis namorar, aos 15 anos, a avó não deixou. Namorou escondido, mas teve problemas com a mãe do menino, que descobriu que ela tinha Aids. Quando o namorado perguntou por que ela não havia contado a ele, Karina começou a chorar. "Falei que não me sentia preparada. Ele era meu primeiro namorado, tinha muito medo de perdê-lo."
A relação durou mais de um ano, mas não resistiu. A mãe dele chegou a expulsá-lo de casa. "Ela disse que não queria um filho aidético. Ele tinha 18 anos, não conseguiu emprego. Acabamos terminando."
Depois disso, e com a morte do pai, ela entrou em depressão. Recuperou-se com a ajuda da avó. "Ela me dava força. Dizia: "você tem que viver, a vida continua"." Fez teatro, atividade que adorou.
Hoje, é casada com Júnior, 19, auxiliar administrativo, com quem mora na casa da avó. Eles se conheceram em um grupo para jovens que vivem ou convivem com o HIV -Júnior é filho de mãe soropositiva, mas não tem o vírus.
Karina é evangélica. Quer ter filhos, mas, no momento, batalha a casa própria. Pensa em estudar psicologia ou sociologia e, enquanto não cria coragem para enfrentar o vestibular, quer tentar um curso técnico de massoterapia. "Tenho mão boa para massagem."
É muito engajada em projetos ligados ao HIV e trabalha em dois deles, como agente de prevenção e monitora.