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O preço da omissão

21/05/2003 - CORREIO BRAZILIENSE

Justiça do Trabalho pune empresa por não combater a discriminação

Decisão inédita da Justiça do Trabalho no Distrito Federal pune empresa por não combater a discriminação sofrida por empregado homossexual. Indenização equivale a 50 meses de salário

João Rafael Torres
Da equipe do Correio

Por quatro meses, o homossexual Noaldo de Lima afirma ter sofrido agressões dos colegas: não reagia porque precisava do emprego

Primeiro ele ouviu indiretas. Depois vieram as piadinhas. E um dia, começaram as agressões físicas. Durante quatro meses, o atendente Noaldo de Lima, 26 anos, que ficava no balcão na entrada do Supermercado Champion no Gama, suportou calado a discriminação dos colegas de trabalho por ser homossexual. Precisava ajudar no sustento da mãe e de dois irmãos, no Jardim Ingá (GO). Os chefes dele sabiam dos constrangimentos, mas nada fizeram. Preferiram a omissão.

Noaldo acabou demitido. A empresa alegou contenção de despesas. O ex-atendente demorou seis meses para saber dos seus direitos e só então entrou com ação na Justiça contra o supermercado. Um ano e quatro meses depois de ter perdido o emprego, ele teve vitória. Em decisão inédita, a Justiça Trabalhista do Distrito Federal condenou uma empresa a pagar indenização por danos morais, por não ter impedido a discriminação, ligada à orientação sexual, no ambiente de trabalho.

O Carrefour (dono da rede Champion) deverá pagar R$ 16.244 ao ex-funcionário, valor correspondente a 50 vezes o salário que Noaldo ganhava. A decisão não pune o Carrefour pela demissão de Noaldo, em janeiro de 2002, mas pela omissão diante das provocações que o empregado sofreu na empresa. A 3ªTurma do Tribunal Regional do Trabalho decidiu que o supermercado deveria tê-lo protegido das agressões.

O acórdão com a decisão em segunda instância deve ser publicado na sexta-feira. O juiz relator do processo, Paulo Henrique Blair, manteve a condenação decidida em primeira instância pelo juiz João Cândido da 5ªVara do Trabalho, em novembro de 2002. ‘‘Por ter agido de forma indiferente a um problema de extrema gravidade, sou forçado a responsabilizá-la (a empresa) por danos morais’’, citou o juiz João Cândido. No final da decisão, a condenação é citada como de ‘‘caráter pedagógico’’ — ou seja, deve servir de lição a outras empresas para que casos como esse não se repitam.

Justa causa

O gerente do Champion na época, segundo Noaldo, chegou a dizer que não admitia funcionários homossexuais na loja. ‘‘E que era o bastante para demissão por justa causa’’. Depois disso, os colegas de trabalho começaram com as provocações.

Ridicularizavam Noaldo pela forma de falar e de andar. Por duas vezes, ele foi agredido fisicamente nas dependências do supermercado, mas optou em não registrar ocorrência policial por temer a reação dos companheiros. Em ambas ocasiões, ele denunciou as agressões à chefia que não tomou atitude, segundo relatou.

O medo da demissão fez com que Noaldo permanecesse calado e não reagisse.‘‘Me sentia diminuído e o pior é que não tinha a quem recorrer’’, relembrou.

As dificuldades financeiras em casa faziam-no suportar os insultos. O salário de R$ 324,48 era mais da metade do dinheiro que sustentava a família. ‘‘Acho que só fui demitido por ser gay’’, comentou.

A idéia de mover a ação partiu de uma cunhada de Noaldo. Zeladora de um prédio na Asa Sul, ela contou a história para moradores que a orientaram: o cunhado deveria procurar a Justiça do Trabalho. Ainda desempregado, Noaldo não sabe o que fazer com o dinheiro da indenização. Com os R$ 10 mil, descontando os honorários do advogado, ele planeja pagar as dívidas e economizar o restante.

O Champion informou que vai recorrer da decisão do TRT. Em comunicado enviado ao Correio, por fax, a direção do supermercado alegou que Noaldo integrou por quase dois anos o quadro de funcionários, deixaria claro que “a rede de supermercados não discrimina colaboradores por conta de suas orientações sexuais’’.

No documento, a direção do Champion comentou que a discriminação deve ser vista com repulsa, e que o funcionário foi demitido porque ‘‘passou a assediar acintosamente alguns colegas, provocando uma animosidade que interferia sobremaneira no trabalho de todos’’. A empresa não fez nenhuma citação sobre a omissão diante dos fatos, mesmo depois de questionada pela reportagem sobre o assunto.

Boicote

A decisão do TRT-DF foi comemorada por entidades de defesa de homossexuais. A ONG Estruturação, em Brasília, divulgou a decisão na Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis. O presidente da ONG, Welson Trindade, disse que o Champion e o Carrefour passam a ser vistos pelos gays como empresas que não respeitam os direitos dos homossexuais.

A desinformação e o constrangimento são apontados na Procuradoria de Defesa dos Direitos do Cidadão como barreiras para as denúncias. Há três anos, não há queixas, segundo o procurador Antônio Ezequiel Neto. ‘‘Não importa se a discriminação é direta ou velada, é crime de injúria e a pessoa deve buscar a Justiça’’, explicou.

R$ 16.244 é o valor da indenização que o funcionário deverá receber

Me sentia diminuído e o pior é que não tinha a quem recorrer

Noaldo de Lima, 26, ex-empregado do Champion

Coloborou Marcelo Rocha