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MEDICAMENTOS PARA TODOS

22/06/2004 - Jornal de Brasília

O acesso universal ao tratamento

O número de ações judiciais para garantir o acesso a medicamentos de alto custo é crescente no Brasil. Além de processos individuais, representações no Ministério Público em todo o País pressionam o Estado para reconhecer a universalidade e incondicionalidade do direito à saúde. A garantia do acesso a medicamentos de alto custo é uma das faces do direito à saúde garantido pela Constituição de 1988. Os resistentes a esse processo argumentam que não há recursos suficientes para todos e que é urgente uma discussão sobre prioridades alocativas em saúde.
A epidemia de HIV/Aids foi paradigmática para compreender a extensão política, ética e econômica do direito à saúde no Brasil. Em 1996, ano marcante na história internacional da Aids, medicamentos ativos contra o HIV foram descobertos. O mais importante deles foi a chamada triterapia. Foi também naquele ano que o Decreto-Lei 9.313 garantiu o acesso universal ao tratamento contra a Aids no País. Por meio dessa lei, todas as pessoas têm acesso garantido aos medicamentos, uma política social em saúde que, rapidamente, passou a ser referência internacional em direitos humanos.
Paradoxalmente, ainda em 1996, o Congresso Nacional aprovou a Lei 9.279, que colocou os medicamentos sob patentes. Isso significou uma nova organização econômica e política que alinhava o Brasil a uma ordem internacional promovida pela Organização Mundial do Comércio (OMC). O curioso dessa lei é que, desde 1945, os medicamentos gozavam de um estatuto de bem público no País, princípio radicalmente modificado com a introdução do princípio dos direitos de propriedade intelectual aos medicamentos.
Segundo a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, as patentes constituem uma das mais antigas formas de proteção da invenção e da propriedade intelectual. O sistema de patentes teria sido criado para "incentivar o desenvolvimento econômico e tecnológico recompensando a criatividade". As patentes se aplicam a novos objetos ou processos inventados e desenvolvidos com aplicabilidade industrial. Na prática, no entanto, as patentes se transformaram em instrumentos criadores de monopólio.
A Aids colocou em curso duas estratégias políticas divergentes. Por um lado, a do reconhecimento do direito à saúde como direito humano universal e, por outro, a da hegemonia de uma ordem econômica perversa em que impera a lógica capitalista do lucro. O problema da regulação de preços dentro de um contexto paradoxal assim implicou estratégias diferenciadas, em que duas delas de destacam no País. A primeira foi a negociação de preços diretamente com os proprietários das moléculas. A segunda foi a produção local por cópia, no caso das drogas sintetizadas antes da lei brasileira de patentes. Os medicamentos ou seus princípios ativos sintetizados antes de 1996 puderam ser licitamente copiados com vistas à produção local. E foi a produção local o que mais influenciou na queda de preços das drogas usadas no tratamento do HIV/Aids. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 1996 e 2002, os preços das drogas importadas caíram cerca de 25%, enquanto os daquelas produzidas localmente, cerca de 80%. Mesmo assim, os custos permanecem excessivamente altos se considerarmos as demandas de saúde.
Paralelamente ao impacto sobre o custo do tratamento, a experiência ligada à produção local de medicamentos anti-retrovirais acarretou também um processo de aquisição de conhecimento e tecnologia, tanto em laboratórios públicos quanto privados nacionais. No campo da Aids, a cópia dos medicamentos protegidos por patentes não foi uma experiência simples ou fácil. As patentes são instrumentos criadores de monopólio não apenas da produção e da comercialização de objetos, mas, em parte e por algum tempo, do conhecimento propriamente dito. São textos incompletos que não fornecem a "receita" completa para a fabricação da droga.
Se nossos técnicos e laboratórios nacionais, sejam eles públicos ou privados, foram capazes de reproduzir moléculas complexas inventadas em outros países e protegidas por patentes e de organizar uma produção local de medicamentos contra a Aids, poderíamos cogitar a extensão dessa experiência para outras doenças, como é o caso da hepatite, por exemplo. A pergunta que precisa ser seriamente enfrentada é se queremos um Estado que garanta e promova o direito à saúde como um princípio incondicional de bem-estar ou um Estado que se subordine a regulamentações de propriedade intelectual para garantir uma ordem econômica internacional.

Marilena Corrêa é médica sanitarista. Debora Diniz é antropóloga.