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COM MAIS DE 50 ANOS E COM AIDS

12/09/2004 - Revista Veja

drogas mais poderosas permite a sobrevivência na velhice

11% dos novos casos de aids ocorrem em pessoas com mais de 50 anos. Há uma década, eram apenas 6%

Desde que a aids começou a fazer vítimas em larga escala, no início dos anos 80, sua imagem sempre foi a de uma doença de jovens. Vários fatores contribuíram para criar essa associação. A aids se disseminou primeiro entre os homossexuais, justamente numa época de ventos liberalizantes em que muitos deles saíam do armário e começavam a promover nas grandes cidades as paradas do orgulho gay, freqüentadas majoritariamente por jovens. Além disso, a atividade sexual é muito mais intensa na juventude, o que tornava essa parcela da população mais vulnerável à disseminação do vírus HIV. Hoje, as estatísticas apontam para outra direção. Em grande parte por causa dos avanços da medicina, que criou remédios mais eficientes no combate ao vírus e outros capazes de minorar os efeitos das infecções secundárias que ele provoca, aumentou bastante a sobrevida de quem tem aids. O resultado é que cresceu o número de doentes que chegam à meia-idade ou passam dos 60 anos. Muitos dos que contraíram a doença nas décadas de 80 e 90, e que na época receberam prognósticos sombrios de seus médicos, ganharam uma longa sobrevida e gozam hoje de saúde suficiente para levar um dia-a-dia próximo do normal.
No Brasil, cujo programa oficial de combate à aids é freqüentemente citado como um exemplo para o mundo, o número de doentes com idade acima de 50 anos se multiplicou. Em 1992, cinqüentões e sessentões representavam 6% dos casos registrados de aids. No ano passado, essa cifra foi de 11%. Também contribuem para essas estatísticas o fato de menos bebês adquirirem o vírus ainda no útero, já que as mães de hoje estão mais bem informadas e prevenidas sobre os riscos de contaminação. Se há menos bebês com vírus, a proporção de pessoas de meia-idade que o contraíram cresce dentro do quadro da população em geral. Nos Estados Unidos, o número de doentes com mais de 50 anos cresceu cinco vezes durante os anos 90, embora o ritmo de novas contaminações, na população americana, tenha diminuído. No Estado de Nova York, para se ter uma idéia de quantidade, 25% dos portadores de HIV têm mais de 50 anos.
Os avanços da medicina são a melhor explicação para o crescimento da população de meia-idade e idosa com o vírus – mas não é a única. Segundo o Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids, órgão do Ministério da Saúde, as pessoas mais velhas estão hoje mais expostas ao vírus HIV do que uma década atrás e, por isso, acabam contraindo aids. "Até há pouco, havia uma noção arraigada na sociedade de que as pessoas, ao envelhecer, eliminavam o sexo de sua vida", diz a médica infectologista Eliane Fonseca. "Hoje há estímulo para que os idosos tenham uma vida social e sexual ativa." Ocorre que a maioria dos idosos, ao contrário do que ocorre com os jovens, não cultiva o hábito de usar preservativos e os encara com desconfiança. Primeiro porque, quando eles próprios eram jovens, os preservativos eram usados principalmente para evitar a gravidez e para relações extraconjugais. Segundo porque os homens nessa faixa de idade têm ereções menos intensas e mais curtas. Por essa razão, eles têm medo de perdê-las na manobra necessária para colocar o preservativo.

Evidentemente, mesmo que os coquetéis de remédios operem prodígios, amadurecer com aids envolve desafios. Além da incidência dos males naturais da velhice, como aumento de pressão, colesterol alto e osteoporose, os coquetéis anti-HIV têm efeitos colaterais fortes, que vão de diarréia a emagrecimento excessivo. Os coquetéis também interferem no efeito dos remédios usados para outros fins, geralmente amplificando seus efeitos. "Nessa fase da vida, o mais importante é manter o CD4 (indicador da capacidade imunológica do indivíduo) alto. Isso porque as pessoas mais velhas são naturalmente mais suscetíveis a infecções oportunistas e elas podem se tornar muito mais graves", explica a médica Eliane Fonseca. Outro risco freqüente é que os médicos deixem de diagnosticar a aids, confundindo seus sintomas com outros problemas típicos da terceira idade. O herpes, por exemplo, pode ser avaliado como uma conseqüência natural do passar dos anos. Suores noturnos podem ser interpretados como resultado da menopausa. A demência que acomete as vítimas da aids se parece muito com aquela relacionada ao mal de Alzheimer, embora se desenvolva com maior velocidade.
Vencidos os percalços e a resistência do vírus, muitos aidéticos com mais de 50 anos podem viver sem grandes restrições e redescobrir os pequenos prazeres da existência. Como acontece com a paulista E.A., de 52 anos, HIV positivo desde os 31, quando foi contaminada numa transfusão de sangue devido a um aborto espontâneo. Eis seu depoimento: "Assim que fui diagnosticada com HIV, ficava prostrada em casa. Não tinha ânimo para sair nem podia, porque estava com a imunidade muito baixa. A partir daí, com a medicação, comecei a melhorar e a vida aos poucos voltou a fluir normalmente. As cinco cápsulas do coquetel anti-HIV que tomo diariamente às vezes causam dor de cabeça, de estômago e enjôos, mas vou em frente. Cuido de meu marido e me fortaleço vendo minhas filhas crescerem com saúde".

Depoimentos:

"Imagine a minha situação: homossexual, portador do HIV e velho. A gente acaba mesmo sozinho, a sociedade não perdoa. Houve uma época em que, por causa da doença, emagreci muito, fiquei com o rosto mais fino, os braços e as pernas perderam musculatura e a barriga cresceu, sintoma típico dos remédios. Fiz um tratamento estético para poder melhorar minha aparência e continuar a trabalhar sem dar na cara que sou doente. As quinze cápsulas de remédio que tomo por dia causam muitos efeitos colaterais, mas não posso me dar ao luxo de passar mal e descansar."
C.C.B., mordomo, 68 anos

"Descobri que era portadora do vírus HIV aos 48 anos. Peguei de um namorado com quem me relacionava há algum tempo. Descobri que ele me traía e tinha relações homossexuais, por isso decidi fazer o teste. Na época, achei que tinha comprado meu atestado de óbito. Meu pai, que já morreu, nunca soube de minha doença e até hoje a escondo de minha mãe. Eu abri mão do sexo. Para alguém te aceitar com aids, tem de te amar muito, e isso é difícil acontecer. Consegui aprender outras formas de ter prazer. Viajo, organizo jantares e saio com os amigos."
S., comerciária, 62 anos