BOLETIM
VACINAS
ANTI HIV/AIDS - NÚMERO 34
PUBLICAÇÃO DO GIV - GRUPO DE INCENTIVO À VIDA - Junho - 2021

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Boletim Vacinas Anti-HIV/AIDS - GIV

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Ética
Desafios em seres humanos
Ensaios de desafio em seres humanos para o SARS-CoV-2 e covid-19 (*)
Vacina Covid-19
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Na pesquisa de vacinas, em animais, um desafio é um estudo que primeiro administra a vacina experimental aos animais e depois os inocula com o agente que produz a doença, para ver se o organismo resiste à infecção. Em seres humanos, a lógica é semelhante.

Para o caso da covid-19, estes ensaios consistem em deliberadamente infectar uma pessoa com o vírus SARS-CoV-2. A pessoa pode ter recebido antes uma candidata a vacina ou não.

No Reino Unido, foi aprovado em fevereiro de 2021 um estudo do desafio humano (EDH) para SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19. Será usado o vírus que circulava em julho de 2020, e não nenhuma nova cepa emergente.

Ele envolve um consórcio que inclui a força-tarefa de vacinas do governo, o Imperial College de Londres, a fundação Royal Free London, NHS Foundation e a empresa clínica hVIVO.

Este primeiro estudo visa estabelecer a menor quantidade de vírus necessária para causar a infecção – ao invés de sintomas. Depois de passar nos testes de triagem, os participantes serão solicitados a entrar em quarentena num hospital em Londres. O vírus será administrado dois dias depois por meio de gotas no nariz. Após a exposição, os participantes serão monitorados 24 horas por dia durante pelo menos 14 dias, com amostras de sangue e esfregaços de nariz colhidos todos os dias.

Após a exposição, os participantes serão monitorados 24 horas por dia durante pelo menos 14 dias, com amostras de sangue e esfregaços de nariz colhidos todos os dias.

“Pediremos às pessoas que testem seu olfato usando cartões de raspar e cheirar”, explicou Chris Chiu, médico do Imperial College de Londres, investigador-chefe do estudo. Os participantes também serão convidados a fazer testes cognitivos.

Após a alta, os participantes continuarão a ser acompanhados por mais de um ano para que os pesquisadores possam monitorar quaisquer sintomas de longa duração. Espera-se que os participantes recebam cerca de £ 4.500 de compensação por seu envolvimento durante todo o ano. O Reino Unido investirá 33 milhões de libras em EDH.

Como se vê, isso significa por em risco a saúde e a vida de uma pessoa para ganhar algum conhecimento. A justificativa é que este conhecimento seria eventualmente útil para a pesquisa de vacinas.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Os EUA e a Organização Mundial da Saúde (OMS) admitiram anteriormente a realização de EDH para o desenvolvimento de vacinas contra a malária, cólera e febre tifoide. No entanto, um pré-requisito de longa data para a implementação destes EDH é que exista um tratamento aceito para a doença em estudo.

Em abril de 2020, 25 deputados dos EUA enviaram uma carta às agências reguladoras do país solicitando a realização de EDH para acelerar a pesquisa de vacinas para a covid-19. Em julho, vários cientistas e pesquisadores enviaram cartas aos diretores dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA solicitando que fossem permitidos estes EDH.

Em maio de 2020, a AVAC publicou uma declaração sobre a ética nos estudos de desafio da vacina para a covid-19.

Em 7 de maio de 2020, uma organização não governamental, a AIDS Vaccine Advocacy Coalition (AVAC) publicou uma declaração – assinada pelo GIV, entre outras ONG – sobre a ética nos estudos de desafio da vacina para a covid-19. Num trecho declara: “Até que haja um tratamento aprovado, um teste de desafio com um patógeno potencialmente fatal, e ainda intratável, é inaceitável”.

Na época, um pesquisador de vacinas questionou se seria ético, dado que os testes de vacinas convencionais avançavam com muita rapidez. A OMS também fez um documento sobre EDH no contexto da covid-19 (2020), colocando condições mínimas para sua realização. Não consta delas a existência de um tratamento eficaz.

PROBLEMAS DE CONSENTIMENTO E PARTICIPAÇÃO

Há muito interesse em participar de estudos de desafio. Um relatório define esse número em mais de 14.000, incluindo brasileiros. Mas, sem mais informações, não há como saber até que ponto esses indivíduos estão informados ou mesmo se são, de fato, altruístas. Ou se o “altruísmo”, na verdade, seria um “heroísmo”. Isto é, arriscar a vida em prol de uma causa. Observe-se que neste caso, a participação no estudo forçosamente daria um sentido à vida dessa pessoa. Nesta situação, é possível falar em autonomia?

Na época da constituição da lista, os EDH testariam vacinas. Logo, os voluntários podiam estar abrigando o “conceito errôneo de prevenção” de que a primeira tentativa de uma vacina seria bem-sucedida para prevenir a infecção com o SARS-CoV-2. Se a polêmica se instaurou em 2020 embasada na necessidade de obter vacinas para a Covid-19 mais rapidamente, agora esta argumentação foi deixada de lado. Em parte, porque há várias vacinas licenciadas, embora a vacinação não esteja ao alcance de todos os que dela precisam no mundo. Não é o caso do Reino Unido.

Além disso, em vários países a prática usual na pesquisa médica com seres humanos saudáveis é pagar-lhes por sua participação – às vezes, muito dinheiro. No Reino Unido serão 4.500 libras. O resultado provável é que um número desproporcional de voluntários viria de grupos de baixa renda, incluindo muitas pessoas que perderam seus empregos por causa da pandemia.

CONHECIMENTO PROFUNDO DA DOENÇA E TRATAMENTO EFICAZ FORAM PRÉ-REQUISITOS EM OUTROS EDH

Para os EDH também é necessário um conhecimento profundo da doença, isto é, do seu desenvolvimento e dos órgãos que ataca, as consequências de longo prazo etc. Somente assim será possível a seleção de voluntários de pouco risco. Este requisito não é cumprido atualmente no caso da covid-19.

É necessário um conhecimento profundo da doença, do seu desenvolvimento e dos órgãos que ataca, as consequências de longo prazo.

Por isto, até pesquisadores que já realizaram EDH escreveram ao JID (agosto 2020) manifestando desacordo.

“... discordamos que os estudos de desafio com SARS-CoV-2 sejam eticamente apropriados no momento, por 3 razões: (1) o conhecimento científico atual da infecção por SARS-CoV-2 é insuficiente para controlar os riscos; (2) a tomada de decisão autônoma, embora necessária, não anula as preocupações nem as responsabilidades sobre o risco por parte dos pesquisadores; e (3) realizar estudos de desafio agora colocaria em risco a confiança nos empreendimentos de pesquisa, potencialmente prejudicando a resposta global à pandemia do novo coronavírus.”

E prosseguem: “Quando os voluntários do estudo morrem ou sofrem danos graves nas mãos dos pesquisadores, os próprios investigadores tornam-se cúmplices, minando potencialmente a confiança das partes interessadas no empreendimento de pesquisa”.

“O panorama atual enfrentado pelas comunidades de pesquisa e de saúde pública é muito complicado. A desconfiança na pesquisa e, em particular, nas vacinas é excessiva. A vacinação na UE é lenta, em parte porque há desconfiança com vacinas, em geral, e, em especial, com algumas vacinas utilizadas. Também espalham-se teorias de conspiração, desinformação, fake news e atitudes anticientíficas. Resultados ruins em um estudo de desafio humano com o SARS-CoV-2 podem ser devastadores, uma vez que a experiência recente demonstra que a desconfiança interfere nos esforços de saúde pública em condições epidêmicas.”

Resultados ruins em um estudo de desafio humano com o SARS-CoV-2 podem ser devastadores.

MUDANÇAS DE ARGUMENTOS PARA A REALIZAÇÃO DO EDH

Em última análise, o valor social dos EDH para o SARS-CoV-2 (em termos de mortes evitadas) baseia-se na premissa que as pessoas em maior risco de morte por covid-19 receberiam uma vacina eficaz e segura mais rapidamente do que sem a realização dos EDH. À luz do que acontece na atualidade, isto comprovou-se falso.

Com efeito, várias vacinas foram rapidamente desenvolvidas, sem o uso destes ensaios, em prazos inferiores a um ano. E há mais de 300 em desenvolvimento. Pretende-se diminuir este prazo? Por qual modo? Se formos colocar em risco a saúde e vida de alguém, o embasamento deve ser muito claro e não somente uma opinião.

Após a obtenção rápida de várias vacinas, a alegação mudou: os EDH poderiam auxiliar no desenvolvimento de vacinas “de segunda geração”. E, mais recentemente, mudou mais ainda: será mais para entender certos aspectos da doença, que darão base para outros estudos. Também, foi objetado qual seria o sentido de fazer estes ensaios usando cepas comuns de SARS-CoV-2 no lugar das variantes agora existentes, objeto das vacinas de segunda geração.

DIRETRIZES E AGÊNCIAS REGULADORAS

Mesmo com os pré-requisitos sendo atendidos, os EDH constituem um ataque frontal ao princípio de não maleficência (ou seja, de não fazer mal num paciente) em nome da autonomia do voluntário, e em nome de um provável benefício para outros muitos (não se sabe quem, nem quantos, nem quando e nem como). E suscitam várias perguntas: será que o consentimento do voluntário desobriga o médico de sua obrigação de não fazer o mal? Isto é permitido pelo Código de Ética Médica? E como se compatibiliza, nos termos do Código Penal, por em risco a saúde ou vida de alguém, transmitir intencionalmente uma doença? A resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde sobre ética em pesquisa, não permite a realização dos EDH.

E como se compatibiliza, nos termos do Código Penal, por em risco a saúde ou vida de alguém, transmitir intencionalmente uma doença?

Uma passagem das Diretrizes Éticas para Pesquisa do Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS) menciona os estudos de desafios humanos e diz: “Alguns riscos não podem ser justificados, mesmo quando a pesquisa tem grande valor social e científico e adultos capazes de dar consentimento informado fariam dar seu consentimento voluntário e informado para participar do estudo. Por exemplo, um estudo envolvendo a infecção intencional de indivíduos saudáveis com anthrax ou ebola, que têm um alto risco de mortalidade devido à ausência de tratamentos eficazes, não seria aceitável mesmo que pudesse resultar no desenvolvimento de vacinas efetivas contra estas doenças.”

E, também, não é claro que as agências regulatórias aceitariam o licenciamento de vacinas embasado em tais ensaios. A FDA (agência reguladora dos EUA, semelhante à Anvisa brasileira) já declarou que para licenciar vacinas de SARS-CoV-2, os ensaios clínicos deverão recrutar muitos milhares de participantes incluindo uma representação adequada de pessoas idosas e com comorbidades, que deveriam ser realizados, como até agora, sem desafios, dado o alto risco de mortalidade para esses grupos.

CONCLUSÃO

No mundo aflito pela pandemia de SARS-CoV-2, tem havido muitas fake news, negacionismo (diminuindo a importância da pandemia, minimizando a gravidade da doença, boicotando isolamento social, uso de máscaras etc.) e tratamentos ineficazes apresentados como úteis. Também há dúvidas, às vezes razoáveis, sobre o benefício fornecido pelas vacinas já aprovadas. Além disso, em alguns locais já havia movimentos contra quaisquer vacinas, que ressurgiram neste cenário. Por todas estas razões, muito tem-se falado sobre a importância de basear as decisões de saúde pública sobre a covid-19 em estudos científicos. Porém, ensaios deste tipo podem minar a confiança na ciência por estar distante da ética e da dignidade humana.

Em suma, a gravidade da covid-19 e a falta de cura ou tratamento eficaz, a existência de outras vacinas para SARS-CoV-2 e a rapidez com que a pesquisa desenvolveu e ainda desenvolve estas vacinas, tornam inaceitáveis os EDH para o desenvolvimento de uma vacina contra SARS-CoV-2. Pensamos que a principal afirmação dos proponentes sobre acelerar o desenvolvimento da vacina (para menos de um ano?) não está suficientemente embasada, e acreditamos que a relação risco-benefício para um EDH é muito incerta e provavelmente inaceitável. Mesmo com mais dados, os EDH correm o risco de agravar ainda mais os níveis crescentes de desconfiança pública em relação ao desenvolvimento da vacina para o SARS-CoV-2, da ciência e da pesquisa médica em geral.

Considerados em conjunto, esses argumentos tornam a realização de EDH para o SARS-CoV-2 injustificada e antiética. Neste momento crítico da resposta à pandemia, fariam mais mal do que bem.

(*) Este artigo foi organizado a partir de textos da BBC, JID, The Guardian e da professora R. Macklin.

REFERÊNCIAS:
• Kahna J.P. et al. For now, it’s unethical to use human challenge studies for SARS-CoV-2 vaccine development. PNAS | November 17, 2020 | vol. 117 | nº 46 | 28541
• Macklin R., Human Challenge Studies for a COVID-19 Vaccine: Ethical Quandaries. Albert Einstein College of Medicine, 15 maio, 2020 (consultado em 10/abril/2021).
• Dawson L. et al. Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 Human Challenge Trials: Too Risky, Too Soon. The Journal of Infectious Diseases, Volume 222, Issue 3, 1 agosto 2020, Págs. 514–516.
https://www.1daysooner.org/us-open-letter (consultado em 11/abril/2021)
https://www.bbc.com/news/health-56097088 Covid-19: World’s first human challenge trials to start in UK (consultado em 11/abril/2021)
• Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas relacionadas a saúde envolvendo seres humanos (Cioms) (versão em português), pgs. 42-43 https://cioms.ch/wp-content/uploads/2018/11/CIOMS-final-Diretrizes-Eticas-Internacionais-Out18.pdf

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