O DIA DA CURA
Dossiê Vacinas - Número 01 - Abril de 1992 |
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Herbert de Souza - Sociólogo e presidente da ABIA - Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS Foi numa manhã comum, como qualquer outra, que abri o jornal e
li a manchete: Descoberta a Cura da AIDS! A principio fiquei deslocado
na cama como se a terra tivesse saído do lugar e meu quarto estivesse
mais a esquerda que de costume.
Ainda na cama, onde de manhã gosto de ficar, tive saudades do Henfil e do Chico e, em meio à alegria que já me contagiava, chorei. Por que haviam sofrido tanto e morrido tão fora de hora? Quanto sofrimento, quanta dor inútil que palavras não descrevem. O olhar parado de quem expira. A máscara terrível de quem morre da peste do século. O abandono sem remédio. A fatalidade que nem a morte enterra? Por que haviam logo eles morridos se eram meus irmãos, a quem telefonava com o hábito de quem acreditava poder fazer isso por séculos e séculos seguidos? De repente, ninguém do outro lado da linha. Números riscados numa agenda sem remédio. Ainda a lembrança do Chico no enterro do Henfil dizendo para mim entre espanto e humor: hoje é o Henfil, amanhã serei eu e você irá daqui a três anos... bem, digamos cinco! E hoje estou eu aqui passados quatro anos, quase cinco, lendo essa notícia, e eles todos mortos antes do tempo. Não há remédio para morte de meus irmãos, que são tantos. De repente me dou conta que houve realmente remédio para AIDS. É hora de levantar, atender telefonemas, reunir o pessoal da ABIA, festejar com o pessoal da IBASE, abrir uma champanhe, ou uma cerveja. Telefonar para saber onde estava o tal remédio, como comprá-lo, o preço, o prazo de chegada. Estaria disponível quando, e a que preço? Quem poderia comprá-lo? O mais importante, no entanto, acontecia no paralelo. Amigos e amigas, que não suspeitava, me chamavam para dizer que eles também eram soropositivos, agora que havia cura. Outros me davam abraço pelo telefone e comunicavam que estavam indo diretamente aos centros de saúde para fazer o teste. Agora que havia cura. Outros e outras diziam que suas vidas sexuais eram um caos, mas que agora valia a pena encarar e se cuidar, porque agora havia cura. Alguns outros me chamavam para dizer que iriam começar o tratamento e o controle e pensar na vida, porque agora havia cura. E finalmente outros me diziam que agora podiam revelar à imprensa sua condição de soropositivos para servir de exemplo a outros, agora que havia cura. De repente me dei conta de que tudo havia mudado porque havia a idéia e o anúncio da cura. Que a idéia da morte inevitável paralisa. Que a idéia da vida mobiliza... mesmo que a morte seja inevitável, como todos sabemos. Acordar sabendo que se pode viver faz tudo ter sentido de vida e mudar o modo como se vive a vida. Acordar pensando que se vai morrer faz tudo perder o sentido. A idéia da morte, no lugar da vida, é a própria morte instalada. De repente me dei conta de que a cura da AIDS sempre havia existido, como possibilidade, antes mesmo de existir como anúncio do fato acontecido, e que seu nome era vida. Foi de repente, como tudo acontece. |
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