Bernardo Galvão e Euclides Castilho
- Pesquisadores titulares da FIOCRUZ
Introdução
Desde a identificação do vírus da imunodeficiência
humana (HIV), o agente etiológico da Síndrome de Imunodeficiência
Humana (AIDS), em 1983, tornou-se possível o desenvolvimento de
uma vacina.
Entretanto, no início, surgiram inúmeras situações
tidas como obstáculos que implicariam em um considerável
retardamento na obtenção de vacinas eficazes tais como:
1) a infecção causada pelo HIV, por ser transmitida através
de fluídos corporais e/ou células infectadas, não
seriam facilmente acessível a anticorpos neutralizantes; 2) uma
infecção latente poderia ocorrer através da integração
do DNA viral no genoma da célula hospedeira com ausência
de expressão viral, impedindo a interação com o sistema
imune, permitindo, assim, a atuação posterior do vírus;
3) a existência de uma grande variedade de isolados de HIV ( que
ocorre principalmente na glicoproteína do envelope onde se localiza
o epítopo – antígeno – neutralizante mais importante,
com mais de 100 variantes já descritas) poderia impedir uma resposta
imune eficaz; 4) seria necessário não só impedir
a entrada do vírus em linfócitos (CD4+) como também
em outras células envolvidas na indução da resposta
imune; 5) a imunização com vacinas contendo glicoproteínas
do envelope do HIV poderiam destruir as células CD4+ que são
fundamentais para a produção de uma resposta imune; 6) proteínas
do HIV utilizadas como imunógeno poderiam potencialmente induzir
auto-anticorpos capazes de inibir a resposta imune, gerar células
T citotóxicas auto-reativas ou anticorpos neutralizantes de baixa
afinidade, que ao invés de inibir a infecção a estimulariam;

Depois da fusão com a membrana da célula e da liberação
do genoma (ARN) viral, ocorre, graças à ação
da transcriptase reversa, a produção primária de
um transcrito do ARN característico do vírus. Origina-se
daí o provírus (molécula de ADN de fita dupla), que
se integra ao cromossomo celular. Quando a célula transcreve as
mensagens do seu próprio cromossomo, recupera o ARN original do
vírus, que é traduzido em proteínas virais. Como
resultado, o vírus de multiplica, podendo ocorrer (ou não)
a destruição da célula. 7) o único modelo
animal utilizado, o chimpanzé, somente é susceptível
à infecção, ou seja, não desenvolve a doença.
Contrapondo-se a estes argumentos várias evidências científicas
foram observadas durante o final da década de 80. Inicialmente,
observou-se que o vírus da imunodeficiência simiana (SIV),
um lentivirus, da mesma família do HIV, quando inoculado experimentalmente
em macacos Rhesus causa uma doença fatal semelhante a AIDS, demonstrando-se
como um bom modelo animal para se acompanhar a evolução
da doença. A semelhança antigênica, genética,
morfológica e funcional entre o HIV-1 e o SIV, como também
similaridades entre o sistema imune de macacos Rhesus e seres humanos,
tem sugerido que uma vacina protetora contra a infecção
e a doença causada pelo SIV em macacos poderá servir de
modelo para a construção de uma vacina, a partir do HIV,
protetora para seres humanos.
Outros fatos foram também observados que tornam bastante favorável
a obtenção de uma vacina em futuro próximo, tais
como: 1) demonstrações de uma imunidade eficaz de vacinas
produzidas a partir de SIV e HIV-1 em macacos Rhesus; 2) evidências
da possibilidade de ocorrerem regiões altamente conservadas nas
glicoproteínas de envelope que o número de sorotipos de
HIV pode ser limitado; 3) melhor entendimento da resposta imune induzida
por epítopos do vírus e dos tipos de imunógenos e
adjuvantes necessários para induzir uma resposta imune celular
e humoral protetora; 4) desenvolvimento de produtos candidatos a vacina
que induzem resposta celular e humoral em humanos (Tabela1); 5) Demonstração
da inocuidade destas vacinas.
Características das vacinas HIV/1 em fase I/II de ensaios
clínicos e números de pessoas voluntárias participantes
segundo o país
Vacina
(Produtor) |
Nº
Indivíduos Vacina Preventiva |
Nº
Indivíduos Vacina Terapêutica |
País |
-
gp160
recombinante / vacinia (Universidade Pierre et Marie Curie / Paris) |
8* |
14* |
Zaire
(8)
França (14) |
-
gp160
recombinante / baculovirus (MicroGeneSys / Wyeth-Ayerst) Fase I |
223 |
173 |
EUA,
Canadá, Suécia |
-
(MicroGeneSys / Wyeth-Ayerst)
Fase II |
- |
140 |
EUA |
-
HIV irradiado por raio gama - gp 120 / levedura (Immune Resp. Corp.)
|
- |
269 |
EUA |
-
gp 160 recombinante / vacínia (Bristol-Nyers Squibb / Ancogen) |
103* |
- |
EUA |
-
Combinação: gp 160 recombinante / vacínia e
gp 160 recombinante / baculovirus |
50 |
- |
EUA |
-
gp 120 recombinante / levedura e gp 120 recombinante (env. 2, 3)
/ células de mamíferos (Ciba / Geigy / Chiron / Biocine) |
25*
24* |
- |
EUA
Suíca |
-
peptídeo (p 17) sintético (HGP-30) (Viral Technologies,
Inc.) |
20 |
- |
Reino
Unido |
-
Anti-idiotipo: anticorpo monoclonal anti CD4* |
- |
4* |
Reino
Unido |
-
p24
recombinante / levedura (Try-Gag) (British Bio-Technology) |
20 |
- |
-
Reino Unido |
-
p24
recombinante / baculovirus (Microgenesys / Wyeth-Ayerst) |
- |
40 |
EUA,
Canadá |
-
gp 160
recombinante / células de mamíferos (Immuno-AG) |
40 |
D |
EUA |
-
gp 120
recombinante / células de mamíferos (Genentech) |
28 |
17 |
EUA |
Pela análise da Tabela 1 depreende-se que mais de 10 fabricantes
estão desenvolvendo testes em voluntários humanos em seus
países de origem, em fases I e II de avaliação, envolvendo
um total de mais de 1000 pessoas. As chamadas vacinas profiláticas
visam prevenir a infecção, daí estarem sendo avaliadas
em indivíduos HIV-negativos. Já as vacinas terapêuticas
se propõem a impedir a evolução a evolução
do estágio de infectado para o estágio de doente, daí
o seu uso em pessoas HIV-positivas.
Entretanto, devido a diversidade do HIV, a variabilidade genética
das diferentes populações e as características epidemiológicas
regionais, torna-se necessário que testes de vacinas sejam aplicados
em diferentes regiões do mundo para se verificar a eficácia
das mesmas. Para tal, se faz necessária a capacitação
técnico-científica de pessoal local.
A Unidade de Desenvolvimento de Vacina Contra AIDS da Organização
Mundial de Saúde
O Programa Mundial de AIDS da Organização Mundial de Saúde
(GPA) possui as seguintes unidades: 1) diagnóstico; 2) clínica
e terapêutica; 3) epidemiologia e comportamento social e 4) desenvolvimento
de vacinas. Esta unidade é assessorada por um Comitê Coordenador,
constituído de 10 indivíduos selecionados segundo reconhecimento
internacional e obedecendo representatividade geográfica, que tem
como principal objetivo dar suporte técnico ao Diretor Geral da
OMS no estabelecimento de pesquisas prioritárias relacionadas ao
desenvolvimento de vacinas para prevenir a infecção ou a
progressão da doença. Entre as funções específicas
do Comitê, tem-se a identificação científica
de pesquisas propostas, identificação de necessidades e
sugestão de meios para reforçar a capacidade de pesquisa.
Ainda é função desta unidade formular, baseadas em
rigorosos critérios éticos e científicos, políticas
e estratégias para o desenvolvimento de vacinas. Alguns aspectos
desta estratégia serão discutidas a seguir.
A Seleção do Brasil Pela OMS Como País Candidato
Para Pesquisas de Eficácia de Vacinas Anti-HIV/AIDS
Após consentimento das autoridades nacionais, visitas foram feitas
por especialistas a 14 países não desenvolvidos, e o Brasil,
juntamente com Uganda, Ruanda e Tailândia, foi selecionado com base
nos seguintes critérios:
- características epidemiológicas;
- existência de coortes;
- capacidade de lidar com ensaios clínicos;
- infra-estrutura laboratorial;
- modalidades de via de transmissão do HIV;
- considerações geográficas;
- possibilidades de financiamento.
Esta seleção, entretanto, não representa uma imposição.
A proposta atual da OMS contempla um trabalho prévio em conjunto
com cientistas brasileiros, visando a estudos epidemiológicos de
incidência, estudos de isolamento e caracterização
de vírus, estudos sócio-antropológicos e estabelecimento
técnico-científico das etapas necessárias para o
desenvolvimento de um ensaio clínico.
Estratégia da OMS Para o Desenvolvimento de Vacinas Anti-HIV/AIDS
Como é amplamente sabido, a OMS recebeu o mandato de dirigir
e coordenador as atividades de controle e prevenção da AIDS,
em nível mundial. Assessorada pelo Comitê Coordenador para
o Aperfeiçoamento da Vacinas, do GPA, formulou uma estratégia
geral para a elaboração de vacinas contra HIV/AIDS.
Esta estratégia tem três aspectos principais: desenvolvimento,
avaliação e disponibilidade. As metas até o fim da
fase de desenvolvimento são: facilitar a colaboração
internacional na pesquisa de vacinas, promover o aperfeiçoamento
de vacinas apropriadas para uso em países não-desenvolvidos
e proporcionar mecanismos para identificar as vacinas candidatas que mereçam
avaliação em um contexto internacional. Durante a etapa
de avaliação as metas são: identificar, avaliar e
assegurar o fortalecimento dos possíveis locais de avaliação
de vacinas em países não-desenvolvidos, promover e apoiar
a realização de provas de campo, científica, e eticamente
bem fundamentadas (fase I, II e III) de vacinas candidatas e assegurar
a análise e avaliação adequadas dos resultados dessas
provas. Até a fase de disponibilidade, as metas incluem estratégias
para identificação de possíveis grupos alvos e mecanismos
para fornecimento futuro de vacinas.
Conclusões
Pelo exposto e na qualidade de pesquisadores brasileiros envolvidos
em estudos sobre AIDS há cerca de 10 anos, na condição
de consultores da OPAS e OMS em inúmeras oportunidades e de membro
do Comitê Coordenador de Vacina da OMS entendemos:
- em breve, uma ou mais vacinas estarão disponíveis para
um ensaio (fase III) e posterior uso em programas de prevenção
nos paises de origem;
- como sendo de fundamental importância o desenvolvimento de estudos
virológicos e clínico-epidemiológicos antecedendo
o desenho e um futuro ensaio profilático;
- como louvável o posicionamento da OMS de propor trabalho conjunto
com especialistas brasileiros visando a preparação de protocolos
locais;
- ser oportuno, desde o início, buscarmos conhecimentos científicos
sobre a procedência ou não da influência de variabilidade
genética tanto do agente como do hospedeiro na eficácia
da vacina, além de outros fatores regionais;
- que com o surgimento de uma vacina eficaz, o Brasil não participando
de testes preliminares dificilmente terá acesso à(s) vacina(s),
já que os países industrializados irão consumir a
totalidade da produção inicial desde que darão prioridade
à vacinação de suas populações; situação
esta que ocorreu por exemplo como o AZT. |