PONTUAÇÕES SOBRE VACINAS CONTRA HIV/AIDS
Dossiê Vacinas - Número 01 - Abril de 1992
Bernardo Galvão e Euclides Castilho - Pesquisadores titulares da FIOCRUZ

Introdução

Desde a identificação do vírus da imunodeficiência humana (HIV), o agente etiológico da Síndrome de Imunodeficiência Humana (AIDS), em 1983, tornou-se possível o desenvolvimento de uma vacina.
Entretanto, no início, surgiram inúmeras situações tidas como obstáculos que implicariam em um considerável retardamento na obtenção de vacinas eficazes tais como: 1) a infecção causada pelo HIV, por ser transmitida através de fluídos corporais e/ou células infectadas, não seriam facilmente acessível a anticorpos neutralizantes; 2) uma infecção latente poderia ocorrer através da integração do DNA viral no genoma da célula hospedeira com ausência de expressão viral, impedindo a interação com o sistema imune, permitindo, assim, a atuação posterior do vírus; 3) a existência de uma grande variedade de isolados de HIV ( que ocorre principalmente na glicoproteína do envelope onde se localiza o epítopo – antígeno – neutralizante mais importante, com mais de 100 variantes já descritas) poderia impedir uma resposta imune eficaz; 4) seria necessário não só impedir a entrada do vírus em linfócitos (CD4+) como também em outras células envolvidas na indução da resposta imune; 5) a imunização com vacinas contendo glicoproteínas do envelope do HIV poderiam destruir as células CD4+ que são fundamentais para a produção de uma resposta imune; 6) proteínas do HIV utilizadas como imunógeno poderiam potencialmente induzir auto-anticorpos capazes de inibir a resposta imune, gerar células T citotóxicas auto-reativas ou anticorpos neutralizantes de baixa afinidade, que ao invés de inibir a infecção a estimulariam;

Depois da fusão com a membrana da célula e da liberação do genoma (ARN) viral, ocorre, graças à ação da transcriptase reversa, a produção primária de um transcrito do ARN característico do vírus. Origina-se daí o provírus (molécula de ADN de fita dupla), que se integra ao cromossomo celular. Quando a célula transcreve as mensagens do seu próprio cromossomo, recupera o ARN original do vírus, que é traduzido em proteínas virais. Como resultado, o vírus de multiplica, podendo ocorrer (ou não) a destruição da célula. 7) o único modelo animal utilizado, o chimpanzé, somente é susceptível à infecção, ou seja, não desenvolve a doença.
Contrapondo-se a estes argumentos várias evidências científicas foram observadas durante o final da década de 80. Inicialmente, observou-se que o vírus da imunodeficiência simiana (SIV), um lentivirus, da mesma família do HIV, quando inoculado experimentalmente em macacos Rhesus causa uma doença fatal semelhante a AIDS, demonstrando-se como um bom modelo animal para se acompanhar a evolução da doença. A semelhança antigênica, genética, morfológica e funcional entre o HIV-1 e o SIV, como também similaridades entre o sistema imune de macacos Rhesus e seres humanos, tem sugerido que uma vacina protetora contra a infecção e a doença causada pelo SIV em macacos poderá servir de modelo para a construção de uma vacina, a partir do HIV, protetora para seres humanos.
Outros fatos foram também observados que tornam bastante favorável a obtenção de uma vacina em futuro próximo, tais como: 1) demonstrações de uma imunidade eficaz de vacinas produzidas a partir de SIV e HIV-1 em macacos Rhesus; 2) evidências da possibilidade de ocorrerem regiões altamente conservadas nas glicoproteínas de envelope que o número de sorotipos de HIV pode ser limitado; 3) melhor entendimento da resposta imune induzida por epítopos do vírus e dos tipos de imunógenos e adjuvantes necessários para induzir uma resposta imune celular e humoral protetora; 4) desenvolvimento de produtos candidatos a vacina que induzem resposta celular e humoral em humanos (Tabela1); 5) Demonstração da inocuidade destas vacinas.

Características das vacinas HIV/1 em fase I/II de ensaios clínicos e números de pessoas voluntárias participantes segundo o país

Vacina (Produtor)
Nº Indivíduos Vacina Preventiva
Nº Indivíduos Vacina Terapêutica
País
- gp160
recombinante / vacinia (Universidade Pierre et Marie Curie / Paris)
8*
14*
Zaire (8)
França (14)
- gp160
recombinante / baculovirus (MicroGeneSys / Wyeth-Ayerst) Fase I
223
173
EUA, Canadá, Suécia
- (MicroGeneSys / Wyeth-Ayerst)
Fase II

 

-

140
EUA
- HIV irradiado por raio gama - gp 120 / levedura (Immune Resp. Corp.)
-
269
EUA
- gp 160 recombinante / vacínia (Bristol-Nyers Squibb / Ancogen)
103*
-
EUA
- Combinação: gp 160 recombinante / vacínia e gp 160 recombinante / baculovirus
50
-
EUA
- gp 120 recombinante / levedura e gp 120 recombinante (env. 2, 3) / células de mamíferos (Ciba / Geigy / Chiron / Biocine)
25*
24*
-
EUA
Suíca
- peptídeo (p 17) sintético (HGP-30) (Viral Technologies, Inc.)
20
-
Reino Unido
- Anti-idiotipo: anticorpo monoclonal anti CD4*
-
4*
Reino Unido
- p24
recombinante / levedura (Try-Gag) (British Bio-Technology)
20
-
- Reino Unido
- p24
recombinante / baculovirus (Microgenesys / Wyeth-Ayerst)
-
40
EUA, Canadá
- gp 160
recombinante / células de mamíferos (Immuno-AG)
40
D
EUA
- gp 120
recombinante / células de mamíferos (Genentech)
28
17
EUA

Pela análise da Tabela 1 depreende-se que mais de 10 fabricantes estão desenvolvendo testes em voluntários humanos em seus países de origem, em fases I e II de avaliação, envolvendo um total de mais de 1000 pessoas. As chamadas vacinas profiláticas visam prevenir a infecção, daí estarem sendo avaliadas em indivíduos HIV-negativos. Já as vacinas terapêuticas se propõem a impedir a evolução a evolução do estágio de infectado para o estágio de doente, daí o seu uso em pessoas HIV-positivas.
Entretanto, devido a diversidade do HIV, a variabilidade genética das diferentes populações e as características epidemiológicas regionais, torna-se necessário que testes de vacinas sejam aplicados em diferentes regiões do mundo para se verificar a eficácia das mesmas. Para tal, se faz necessária a capacitação técnico-científica de pessoal local.


A Unidade de Desenvolvimento de Vacina Contra AIDS da Organização Mundial de Saúde

O Programa Mundial de AIDS da Organização Mundial de Saúde (GPA) possui as seguintes unidades: 1) diagnóstico; 2) clínica e terapêutica; 3) epidemiologia e comportamento social e 4) desenvolvimento de vacinas. Esta unidade é assessorada por um Comitê Coordenador, constituído de 10 indivíduos selecionados segundo reconhecimento internacional e obedecendo representatividade geográfica, que tem como principal objetivo dar suporte técnico ao Diretor Geral da OMS no estabelecimento de pesquisas prioritárias relacionadas ao desenvolvimento de vacinas para prevenir a infecção ou a progressão da doença. Entre as funções específicas do Comitê, tem-se a identificação científica de pesquisas propostas, identificação de necessidades e sugestão de meios para reforçar a capacidade de pesquisa. Ainda é função desta unidade formular, baseadas em rigorosos critérios éticos e científicos, políticas e estratégias para o desenvolvimento de vacinas. Alguns aspectos desta estratégia serão discutidas a seguir.

A Seleção do Brasil Pela OMS Como País Candidato Para Pesquisas de Eficácia de Vacinas Anti-HIV/AIDS

Após consentimento das autoridades nacionais, visitas foram feitas por especialistas a 14 países não desenvolvidos, e o Brasil, juntamente com Uganda, Ruanda e Tailândia, foi selecionado com base nos seguintes critérios:
- características epidemiológicas;
- existência de coortes;
- capacidade de lidar com ensaios clínicos;
- infra-estrutura laboratorial;
- modalidades de via de transmissão do HIV;
- considerações geográficas;
- possibilidades de financiamento.
Esta seleção, entretanto, não representa uma imposição. A proposta atual da OMS contempla um trabalho prévio em conjunto com cientistas brasileiros, visando a estudos epidemiológicos de incidência, estudos de isolamento e caracterização de vírus, estudos sócio-antropológicos e estabelecimento técnico-científico das etapas necessárias para o desenvolvimento de um ensaio clínico.

Estratégia da OMS Para o Desenvolvimento de Vacinas Anti-HIV/AIDS

Como é amplamente sabido, a OMS recebeu o mandato de dirigir e coordenador as atividades de controle e prevenção da AIDS, em nível mundial. Assessorada pelo Comitê Coordenador para o Aperfeiçoamento da Vacinas, do GPA, formulou uma estratégia geral para a elaboração de vacinas contra HIV/AIDS.
Esta estratégia tem três aspectos principais: desenvolvimento, avaliação e disponibilidade. As metas até o fim da fase de desenvolvimento são: facilitar a colaboração internacional na pesquisa de vacinas, promover o aperfeiçoamento de vacinas apropriadas para uso em países não-desenvolvidos e proporcionar mecanismos para identificar as vacinas candidatas que mereçam avaliação em um contexto internacional. Durante a etapa de avaliação as metas são: identificar, avaliar e assegurar o fortalecimento dos possíveis locais de avaliação de vacinas em países não-desenvolvidos, promover e apoiar a realização de provas de campo, científica, e eticamente bem fundamentadas (fase I, II e III) de vacinas candidatas e assegurar a análise e avaliação adequadas dos resultados dessas provas. Até a fase de disponibilidade, as metas incluem estratégias para identificação de possíveis grupos alvos e mecanismos para fornecimento futuro de vacinas.

Conclusões

Pelo exposto e na qualidade de pesquisadores brasileiros envolvidos em estudos sobre AIDS há cerca de 10 anos, na condição de consultores da OPAS e OMS em inúmeras oportunidades e de membro do Comitê Coordenador de Vacina da OMS entendemos:
- em breve, uma ou mais vacinas estarão disponíveis para um ensaio (fase III) e posterior uso em programas de prevenção nos paises de origem;
- como sendo de fundamental importância o desenvolvimento de estudos virológicos e clínico-epidemiológicos antecedendo o desenho e um futuro ensaio profilático;
- como louvável o posicionamento da OMS de propor trabalho conjunto com especialistas brasileiros visando a preparação de protocolos locais;
- ser oportuno, desde o início, buscarmos conhecimentos científicos sobre a procedência ou não da influência de variabilidade genética tanto do agente como do hospedeiro na eficácia da vacina, além de outros fatores regionais;
- que com o surgimento de uma vacina eficaz, o Brasil não participando de testes preliminares dificilmente terá acesso à(s) vacina(s), já que os países industrializados irão consumir a totalidade da produção inicial desde que darão prioridade à vacinação de suas populações; situação esta que ocorreu por exemplo como o AZT.


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